domingo, 29 de julho de 2012

Uma questão de pressão


(escrito em 10/11/2009)

Colegas de todos os livros.

Aconteceu na última semana, no Centro de Convenções de Maceió, a IV Bienal Internacional do Livro de Alagoas, cujo homenageado foi o caeté José Marques de Melo que, para atender a todos os compromissos do evento, teve que se afastar uns dias da terra da garoa e usufruir um pouco do seu apartamento em Maceió na praia de águas mornas da Jatiúca.

Quando da sua chegada, Zé Melo promoveu um pequeno encontro, uma tertúlia segundo o próprio anfitrião, no seu apartamento com alguns escritores santanenses e, quem diria, entre os convidados lá estava este humilde caeté com a bagagem de um blog na internet e um currículo que não enche nem um dedal. Conversa vai, conversa vem... Muitas histórias de Santana do Ipanema, até que Zé Melo começou a contar uns causos do seu pai, o Seu Leusinger, do qual já tive oportunidade de falar aqui nas Saudações.

Contou Zé Melo que certo dia seu pai chegou a São Paulo e foi logo dizendo que fora lá para conhecer um filme em CinemaScope, uma técnica que garantia uma projeção em formato bem maior que aquele usado até então e que foi largamente utilizada entre 1953 e 1967. Considerando-se o tamanho da viagem e a determinação do homem, Zé não teve alternativa senão procurar saber de uma fita em exibição que fora produzida com aquela tecnologia e a escolha recaiu sobre um filme estrelado por Burt Lancaster. No decorrer do filme, durante uma cena em que o mocinho se balançava num trapézio, o efeito produzido pela imagem de alta qualidade levou Seu Leusinger a sentir enjôo. Aperreado, falou para seu filho que estava com vontade de vomitar. Prontamente Zé pegou-o pelo braço e o conduziu para o banheiro onde poderia então se aliviar. Saiu um tanto quanto apressado, mas antes de chegar ao destino, a pressão foi tanta que o velho não aguentou, abriu a boca e derramou um jato de "lava" quente nos pés de, nada mais nada menos, Agnaldo Rayol, cantor romântico que naquela época encontrava-se no auge da sua carreira.

Todos nós rimos com essa história e outras tantas até que, tendo em vista o adiantado da hora, cada um foi para sua casa.

No dia da abertura da Bienal, dia 30, lá estava eu, visitando todos os stands e me lembrando do período em que, morando na Cidade Maravilhosa, tive pela primeira vez a oportunidade de visitar uma Bienal, com certeza muito maior que à Bienal caeté.

Na segunda-feira, dia 02, retornei ao Centro de Convenções com um objetivo muito claro, assistir uma mesa-redonda sobre o livro de Zé Melo que trata da sua trajetória de jornalista e escritor. Logo no início do evento, percebi que alguma coisa não estava bem. Comecei a sentir um mal-estar e, em determinado momento, chamei minha esposa Eliane para sairmos. Uma vez fora da sala onde se realizava a palestra não tive dúvidas, caminhei o mais rápido que pude em direção à saída, pois pressentia o que estava por vir. A vista começou a ficar escura e só não desmaiei porque cheguei à porta de saída e, imediatamente, me sentei no primeiro degrau com aquela certeza de que sentado não cairia.

Apesar de permanecer consciente eu me sentia fraco e não conseguia nem falar. Preocupada em me levar para um lugar onde eu pudesse ser socorrido, Eliane me perguntava onde eu havia estacionado o carro e eu só conseguia levantar a mão e apontar na direção em que o carro estava no meio do estacionamento lotado. Percebi que os seguranças se aproximaram e tentavam me ajudar, mas eu não conseguia me levantar nem atender aos seus questionamentos.

Em determinado momento, senti algo que parecia uma ânsia de vômito e me lembrei dos pés do Aguinaldo Rayol. Mas não foi desta maneira que a minha história aconteceu porque, de repente, a pressão que era para cima inverteu o sentido, numa evocação ao adágio popular que diz: “O buraco é mais embaixo”. Nessa altura do campeonato já havia recobrado um pouco das minhas forças e pedi ajuda aos seguranças para ir ao banheiro. Acredito que quem viu a cena sem saber o que estava acontecendo, deve ter pensado que os "homi tava" carregando um bêbado, porque era assim que eu me sentia. Eu conseguia dar as passadas, mas, sem ter o equilíbrio, não poderia dispensar a ajuda dos dois senhores que me seguravam, um em cada braço.

Para minha sorte o banheiro aparentava estar limpo, porque com a minha dificuldade de equilíbrio eu não sei o que seria de mim. Com muito controle consegui tirar a camisa e baixando as calças sentei sem cerimônia no trono. Enquanto sentia a descida de uma massa disforme e líquida percebi a subida de um cheiro nauseabundo que botou os seguranças para correr. Minha valorosa esposa, com medo de ficar viúva, resistiu bravamente enquanto, de instantes em instantes, perguntava:

 - Virgílio você está bem?

Na verdade, considerando que aquilo que saíra não prestava mesmo, eu só podia me sentir melhor. O sangue voltou a circular e eu, debruçado sobre os joelhos, comecei a suar tão abundantemente que o suor escorria pelo rosto e pingava no fundo da cueca esticada entre as canelas. De repente ouvi a voz de alguém perguntando por um homem que estava passando mal. Tratava-se do médico de plantão do Posto de Atendimento Médico da Bienal, então ouvi a voz de Eliane que disse:

 - Doutor é melhor o senhor sair daqui que o cheiro está terrível.

A partir daí então, eu fui me sentindo mais aliviado e cada vez melhor, até que pude sair daquele assento nada confortável. Após algumas providências básicas como dar descarga, lavar as mãos e o rosto, fui caminhando com cuidado e acompanhado por minha fiel escudeira ao Posto Médico onde fui examinado, respondi algumas perguntas do médico e soube que, mesmo após estar me sentindo bem melhor, minha pressão arterial ainda media nove por seis. Até hoje eu me pergunto que marca ela alcaçou no auge dos acontecimentos. Como o exame clínico não acusou maiores anormalidades e eu já estava me sentindo bem, apesar da pressão continuar baixa, o médico permitiu que eu voltasse para casa... Com Eliane dirigindo, é claro.

Hoje eu estou bem e muito feliz ao saber que a Bienal Internacional do Livro superou todas as expectativas de público e de vendas, firmando-se como um importante evento cultural das terras caetés.

Uma boa semana para todos.

Saúde, luz e paz.

Virgílio Agra.

sexta-feira, 27 de julho de 2012

Tome uma garapa para acalmar

Foto histórica.
Da esquerda para a direita Otávio Marcondes Ferraz, diretor de engenharia da CHESF, Álvaro de Carvalho, Euclides Ribeiro e o garoto em pé e de camisa branca é Euclides Batista Filho.

(escrito originalmente em 20/10/2009)

Colegas de todos os estados de nervos.

Hoje em dia quando o sujeito está nervoso, preocupado, perturbado, estressado etc. toma um calmante, uma dose de uísque, tira férias, vai "namorar", lê um livro de auto-ajuda ou então vai ao psicólogo que logo em seguida já começa a dizer que se sente bem melhor (quem quiser que acredite). No meu tempo de menino, quando o cara tava aperreado tomava uma água com açúcar e já se sentia melhor. Uma notícia de morte, um susto ou qualquer coisa do gênero, bastava uma garapinha e o cabra já se sentia aliviado. Uma solução adequada para cada época.

No tempo em que morei nas terras baianas de Paulo Afonso, tive a oportunidade de conhecer um cara do qual muito me orgulho de tê-lo no rol dos meus amigos. Euclides Batista Filho nasceu em 1945, nessa cidade, numa barraca de lona. O detalhe é que, naquela época, naquele lugar não havia uma cidade e sim um acampamento que abrigava os trabalhadores que construíam uma pequena usina hidrelétrica que ficou conhecida como Usina Piloto, uma obra precursora do grande projeto que veio a ser a exploração do potencial hidrelétrico da Cachoeira de Paulo Afonso que culminou com a criação da Companhia Hidro Elétrica do São Francisco em 1948. Com apenas 14 anos de idade, vendo-se órfão, Euclides procurou e conseguiu um emprego no almoxarifado da CHESF como datilógrafo. Com aquela idade ele era tão pequeno que, para que ele pudesse alcançar a máquina de datilografia, era preciso colocar dois catálogos telefônicos no assento da cadeira. Apesar de ter que dividir o seu tempo entre a escola e o trabalho, sua postura e empenho o levaram a colher as boas graças do Chefe do Almoxarifado que era o Seu Álvaro de Carvalho.

Como a convivência com sua madrasta não era das melhores, certo dia o garoto procurou seu chefe e pediu que ele arranjasse um alojamento de solteiro para ele morar. Seu Álvaro gostava de fumar um charuto que nunca lhe saia da boca, de modo que ele sempre falava com os dentes cerrados para não derrubar o charuto. O homem olhou para o menino e disse:

 - Ora porra! Tu é “de menor”, você não sabe que para um “de menor” ter um alojamento precisa ter alguém que se responsabilize por ele?

Euclides olhou para ele e com a firmeza com que fala até o dia de hoje disse:

 - Sei sim senhor.

 - E quem é esse responsável? Porra!

 - O senhor.

Seu Álvaro teve um susto tão grande que quase engoliu o charuto.

 - Porra! Como é que eu posso me responsabilizar por você?

 - O senhor pode, porque o senhor me conhece, sabe dos meus procedimentos e o senhor tem autoridade para me dar e me tirar do alojamento.

O homem pensou um pouco e em seguida mandou a secretária preparar uma ordem para que Euclides recebesse o alojamento. O fato era tão inusitado que ele teve que usar de toda sua autoridade para que sua ordem fosse cumprida, mas tenho certeza que Seu Álvaro nunca se arrependeu da sua decisão. Certo dia a CHESF resolveu transferir uma série de funcionários para a sede da Companhia, que àquela época era na cidade do Rio de Janeiro. Dentre esses funcionários estavam Álvaro de Carvalho e Euclides Batista e foi na Cidade Maravilhosa que Euclides desenvolveu sua produtiva vida profissional.

Certa ocasião, numa das nossas longas conversas, Euclides me contou que nos seus tempos de menino havia um doido que perambulava pelas ruas de Paulo Afonso conhecido pelo nome de “Garapa”. Costumeiramente o rapaz era um sujeito pacato e não criava problema com ninguém, mas o seu comportamento se alterava totalmente quando alguém o chamava pelo seu apelido de modo que, quando ele era assim chamado, o tempo fechava. O sujeito gritava palavrões, atirava pedras e corria atrás da moleca que se divertia perturbando o infeliz.

Euclides contou que tinha dois colegas da mesma idade dele que eram por demais traquinos. Chamavam-se Washington e Luiz Gonzaga (não confundir com o Rei do Baião). Certo dia, Washington e Luiz perceberam que “Garapa” gostava de descansar à sombra de umas árvores, próximo do antigo Posto de Saúde lá da Rua das Flores. Decididos em perturbar a vida do doido que estava ali, parado sem mexer com ninguém, os dois posicionaram-se nas laterais do Posto de Saúde e um deles gritou:

 - Água.

Logo em seguida, do outro lado do Posto de Saúde, o outro gritou:

 - Açúcar.

“Garapa” nem se perturbou, acreditando que aquilo não dizia respeito a ele. Mas os gritos continuavam até que, finalmente, o coitado percebeu a malícia. Um gritava água e o outro respondia gritando açúcar e quanto mais eles gritavam mais o sangue de “Garapa” esquentava. Sem conseguir identificar exatamente de onde partiam os chamados, até porque cada um dos ingredientes chegava de lados opostos, o coitado começou a ter aquela vontade louca de pegar os dois pestinhas e esganá-los. O problema é que, se corresse para tentar pegar um, o outro inevitavelmente escaparia. O dilema era grande, o juízo era pouco e os meninos continuavam a gritar:

 - Água

 - Açúcar

"Garapa" perturbado, olhou prum lado, olhou pro outro, percebeu que nem os meninos iriam parar, nem ele iria conseguir pegá-los e num gesto de desespero gritou:

 - Mistura peste! Mistura se vocês têm coragem! Mistura que eu pego vocês e mostro o que é garapa!

Meus caros colegas. À semana passada não pude escrever para vocês porque tive alguns compromissos, portanto gostaria de transmitir um duplo desejo que todos tenham uma ótima semana e, ao mesmo tempo, transmitir através dos cariocas e caetés honorários os meus cumprimentos à Cidade Maravilhosa pela conquista de cidade sede das olimpíadas de 2016. Antes que alguém comente, saibam que eu tenho consciência que os cumprimentos estão seguindo um pouco atrasados, mas, assim mesmo, vão de coração.

Enquanto isso, lá pras bandas da Cachoeira de Paulo Afonso, em pleno gozo da sua merecida aposentadoria, Euclides Batista Filho é um verdadeiro arquivo vivo da história da Capital da Energia

Saúde, luz e paz.

Virgílio Agra

domingo, 22 de julho de 2012

Notas de Falecimento


Foto do livro de Chico Anísio com o desenho de Ziraldo

(escrito em 28/09/2009)

Colegas de todos os níveis de lucidez.

De médico e de louco todos nós temos um pouco, portanto, cuidado ao pensar que alguém é louco, pois pode ser que outra pessoa tenha o mesmo pensamento ao seu respeito.

Uma característica básica das cidades pequenas é o fato de conhecermos "todo mundo". De fato, anonimato nas cidades é algo que dura um intervalo de tempo proporcional ao tamanho das mesmas, de modo que, nas pequenas cidades, temos a oportunidade de conhecer desde os sãos até os loucos. Durante o tempo em que morei na Cidade Maravilhosa pude observar pessoas que aparentemente tinham algum tipo de distúrbio mental transitando pelas ruas e se confundindo com a multidão sem despertar a menor atenção, nem de repulsa nem de solidariedade, entre os passantes. Por outro lado, durante o tempo em que morei no interior, percebi que a notoriedade era uma característica acessível a muitas pessoas, tanto os loucos, como os nem tanto.

No período em que morei nas terras baianas de Paulo Afonso, trabalhava na loja do meu pai e tinha como colega, dentre outros, Stefan, um velho amigo que eu conhecia desde os tempos em que ia pescar piabas no Panema, nos períodos em que o velho rio temporário tinha água correndo no seu leito. Seu nome, incomum naquelas bandas, lhe foi atribuído como homenagem ao escritor judeu-austríaco Stefan Zweig. Ele foi criado por sua avó, Dona Sebastiana, mas, além dela, eu também tive oportunidade de conhecer o seu pai, cujo nome era Hermínio, mas era conhecido como Moreninho. Nos tempos em que assistência médica era um recurso raro no sertão, ele tinha uma farmácia em Santana do Ipanema e, periodicamente, carregava um burro com medicamentos e saía pelo sertão consultando o povo, tratando de suas mazelas e vendendo os seus remédios de modo que os matutos chegavam a tratá-lo como “Doutor Moreninho”. Nas horas de folga, era um boêmio de carteirinha, gostava de participar das serenatas que naquela época eram muito comuns nas ruas de Santana. Quando ele morreu os velhos amigos prestaram-lhe a última homenagem, conduziram o caixão até o cemitério e lá então, fizeram para ele a última seresta.

Na minha vivência no interior, dentre as lições aprendidas, cheguei à conclusão que salão de barbeiro e balcão de loja de ferragens deveriam ser classificados não como comércio, mas como área de convivência. A loja do meu pai, Casa o Ferrageiro, é freqüentada pelos diversos personagens da região, cada um trazendo os mais diferentes tipos de notícias de todas as partes e este relacionamento com pessoas das diversas cidades e povoados fazia com os vendedores da loja conhecessem cada um deles associando o seu nome ao seu local de origem, como era o caso de Galego de Petrolândia, Hélio de Glória, Miro e Vicente de Jeremoabo e outros tantos. Da mesma maneira os vendedores também eram conhecidos pelo nome da loja em que trabalhavam. Daí, assim como os demais colegas de trabalho, lá em Paulo Afonso, o meu amigo era conhecido por muitos como Stefan do Ferrageiro.

Dentre os freqüentadores da loja, havia um rapaz chamado Severino que todos chamam de "Severino INPS", antiga sigla do Instituto Nacional de Seguridade Social. Segundo dizem, ele recebia um "aposento" do INSS pelo fato de ter uma limitação mental, mas adquiriu este apelido pelo fato de ter a mania de perambular pelos cantos, ouvir as conversas e, ao saber de algum caso de falecimento partia imediatamente para contar a notícia a todos que encontrava pela rua, para pedir em troca da informação fornecida um “trocadinho hoje”.

Sempre ouvi dizer que "Severino INPS" morava com sua avó que, por sinal, cuidava bem dele. Por ser uma pessoa de poucas posses suas vestimentas eram, naturalmente, modestas. Porém, eu nunca o vi usando roupas esfarrapadas ou trajado de maneira que viesse a denotar falta de zelo por parte da sua família. Onde ele chegava dava logo seu recado, pedia um trocadinho e, sendo atendido ou não, saía logo para dar a notícia ao próximo passante, sem nunca ter agido de forma violenta ou acintosa com ninguém. De modo que, o ato de pedir um “trocadinho hoje”, era percebido por ele como uma gorjeta por um serviço de informação prestada e jamais como mendicância.

"INPS" ia sempre à Casa O Ferrageiro dar a "notícia" do dia. Certa feita contou que uma pessoa havia morrido e ao ser questionado sobre a causa daquela morte, respondeu:

 - O cara "tava" dormindo, quando acordou "tava" morto.

Noutra ocasião quando ele chegou, pediu o “trocadinho hoje” e não deu notícia nenhuma. Aí meu pai perguntou:

 - E aí Severino? Quem foi que morreu hoje?

 - Ninguém. Tem um trocadinho hoje?

Diante da resposta papai então resolveu tirar uma onda com ele e falou:

 - Sabe quem morreu?

 - Sei não, Sinhô.

 - Quem morreu foi Stefan. Stefan do Ferrageiro.

Stefan, que está vivo até os dias de hoje e gozando de boa saúde, estava naquele momento trabalhando no balcão e nem sequer imaginava que seu nome estava sendo citado a poucos metros de distância.

Acredito que, ao receber a notícia, "INPS" deve ter se sentido revigorado, afinal de contas, um dia sem notícia de morte significava menos gorjetas no bolso. Ele então partiu imediatamente para a rua para transmitir a todos a novidade. Como efeito, dentro de poucos minutos, muitos amigos começaram a ligar para a loja para confirmar a notícia e outros queriam saber quando seria o enterro. Com certeza, ao tomar conhecimento dos fatos todos riram, porém, durante algum tempo, Stefan continuou encontrando pessoas na rua que se surpreendiam por avistá-lo, pois o tinham como morto e enterrado.

Colegas no momento em que me despeço e desejo a todos uma boa semana de trabalho, gostaria de cumprimentar a todos os meus colegas "não gente" que completaram mais um ano exercendo uma profissão de doidos.

Saúde e paz.

Virgílio Agra

quinta-feira, 19 de julho de 2012

Oxente! Deus salve a rainha


Locomotiva da antiga Ferrovia Paulo Afonso
Delmiro Gouveia - AL

(escrito em 14/09/2009)

Colegas de todos os meios de transporte.

Quando era criança, aluno do curso primário, nas bancas do Instituto Sagrada Família, tendo aula de Ciências, aprendi que ser vivo é todo aquele que nasce, cresce, reproduz e morre. Naquele tempo eu imaginava que esta categoria de seres era composta por bichos, plantas, micróbios e gente. O que eu não conseguia imaginar àquela época é que as manifestações do espírito humano como arte, religiosidade, língua, costumes, etc., também estão sujeitos a esta mesma lei.

A língua do nosso país que oficialmente é o português, não foge, coisa que ninguém conseguiria, a esta lei implacável. O maior exemplo de morte é o primeiro documento escrito neste solo, a carta de Caminha. Caso seu texto original fosse lido hoje em dia por um cidadão comum, jamais seria entendido, porque foi escrito numa língua morta, ou seja, o português do século XV. À medida que a língua recebe influências quer vindas do estrangeiro, da linguagem popular e até mesmo da própria tecnologia renasce e morre num movimento dialético infinito.

Às vezes nós não percebemos, mas uma série de palavras que fazem parte do nosso dia-a-dia tem origem bem diversa daquela praticada na terra de Camões. Um exemplo extremamente interessante e até mesmo engraçado é a influência da língua inglesa no palavreado ligado às ferrovias. Quando se iniciou a construção de ferrovias no Brasil a influência britânica não se limitou à venda de tecnologia. Fruto dessa influência existe palavras que hoje são usadas no país inteiro e fazem parte até da norma culta, enquanto que outras são meros regionalismos, pronunciados com sotaque próprio e com significados bastante sutis.

Toda estrada de ferro tem paradas para embarque e desembarque, mas enquanto nas terras d'além mar uma parada de trem chama-se GARE, aqui é chamada de ESTAÇÃO, do inglês STATION. O conjunto formado por uma locomotiva rebocando uma sequência de vagões sobre os trilhos aqui é chamado de TREM, do termo britânico TRAIN, porém, na terra dos nossos queridos patrícios este mesmo conjunto é chamado de COMBOIO.

A influência do linguajar dos súditos de Sua Majestade foi particularmente sentida nas terras nordestinas, onde essa nacionalidade de construtores permaneceu trabalhando por mais tempo. Um caso já bastante debatido é o nome do estilo musical característico deste pedaço do Brasil. Como as obras das ferrovias duravam meses e passavam por lugares longe das cidades, as direções das obras ocasionalmente organizavam festas para distrair e motivar o pessoal, porém havia festas onde só entravam os funcionários graduados e quando era promovida uma festa em que os trabalhadores braçais podiam entrar, eles anunciavam que o evento era para todos usando o termo FOR ALL, o que era entendido e propagado por aqueles homens como sendo FORRÓ.

No decorrer de uma obra sempre ocorre uma falha, um imprevisto ou coisa do gênero e qual não era a reação dos bretões quando se deparavam com alguma coisa fora daquilo que esperavam senão exclamar um sonoro OH SHIT ! ! ! . Expressão que ouvida e imitada originou o tradicional, marcante e nordestino OXENTE, que para ser autêntico deve ser pronunciado com "O" fechado. Quem pronuncia OXENTE com o "Ó" aberto, com certeza, não é nordestino. É interessante que alguns desavisados, ou mal assessorados, pensam que a palavra seria o equivalente a expressão Oh gente! Ledo engano. Ri bastante, há uns dias atrás ao assistir a reapresentação de uma telenovela, onde um personagem de origem nordestina ao entrar em casa e não encontrar ninguém começou a percorrer seus cômodos gritando para todos os lados: OXENTE... OXENTE... OXENTE. O coitado do autor da novela simplesmente colocou seu personagem para gritar a plenos pulmões: OH MERDA... OH MERDA... OH MERDA.

Do mesmo jeito que algumas palavras do nosso idioma surgiram da introdução ou interpretação de expressões britânicas, outras surgiram pela dificuldade dos engenheiros em expressarem-se na língua da nossa terra natal. A construção de uma ferrovia é repleta de detalhes construtivos e medidas muito precisas. Segundo o Dr. Romel Vanderley, caeté e professor do curso de engenharia da Universidade Estadual de Maringá, a "distância entre as faces internas das cabeças dos dois trilhos de uma via férrea, o termo técnico em português é BITOLA e na língua inglesa o termo técnico é TRACK-GAUGE ou RAIL-GAUGE". Como ninguém iria entender um palavrão destes, o jeito foi os engenheiros usarem o termo técnico local. Preocupado com a precisão das medidas na construção de uma ferrovia no Ceará, certo engenheiro ficava o tempo todo gesticulando e falando para os operários ficarem atentos à BITOLA, pronunciando a vogal "I" com a pronúncia inglesa "AI". No nordeste de homens fortes, segundo Euclides da Cunha, o jeito excêntrico de se expressar e gesticular do súdito de Sua Majestade causava estranheza aos trabalhadores locais, o que levou ao surgimento da expressão BAITOLA, usada inicialmente para referir-se a este técnico e, posteriormente... Essa parte da história vocês conhecem bem.

Colegas, ao mesmo tempo em que desejo a todos uma ótima semana de trabalho, gostaria de homenagear aqui todos os trabalhadores nordestinos, homens e mulheres, jovens e velhos que com sangue, suor e sofrimento trabalharam enfrentando as mais diversas condições para construir este país de norte a sul.

Saúde e paz.

Virgílio Agra.


PS: Vejam aqui a versão dessa história, contada por Geraldo Azevedo, um dos maiores cantores e compositores da música regional nordestina, com a primoroza animação de Renata Martins Pereira Mola.







domingo, 15 de julho de 2012

Casa Milhões


Seu Miguel Bulhões na década de 80
Nascido em 12/11/1903 / Falecido em 05/10/1995

(escrito em 10/09/2009)

Colegas de todos os nomes.

O mês de setembro é aquele onde mais se ouve os sons das bandas marciais e, talvez por conta disto, sempre me lembro de uma figura marcante na história da pequena Santana do Ipanema, o Maestro Miguel Bulhões.

Nos meados do século passado as bandas de fanfarra empolgavam as comunidades de norte a sul deste país. Os membros das bandas eram admirados e o simples fato de uma escola ou uma pequena cidade possuir uma banda era motivo de orgulho para todos aqueles, alunos ou cidadãos, que compunham tal comunidade. Seu Miguel tinha uma pequena casa comercial em Santana do Ipanema, mas ficou conhecido e respeitado em toda a região pelo seu incomparável talento musical, pois era o Mestre da Banda. Apesar de nunca haver frequentado qualquer escola formal de música, aprendera a ler partituras e ensinava com muito zelo a todos aqueles que se interessassem pela arte da música. Contam que ele reunia os alunos da banda num salão e começava a dar suas aulas. Como o compartimento não tinha qualquer tipo de tratamento acústico os instrumentos causavam a impressão de uma grande barulheira, mas os ouvidos atentos do Seu Miguel não se deixavam enganar. Um amigo meu contou-me que ficava admirado quando o Mestre interrompia o ensaio e dirigindo-se a um dos seus pupilos dizia-lhe:

 - Ô "Fulano", não é Si, é Si bemol.

E todos se perguntavam como era possível alguém distinguir uma nota destoante no meio de tantas misturas de sons.

Quando eu era um garoto, ele já era um senhor de idade avançada. Naquela época, uma criança ajudar nos afazeres domésticos era um procedimento normal. Vivendo numa cidade e época de poucos recursos, minha tarefa diária era dar recados e fazer mandados. Ir ao armazém para comprar alguma coisa, buscar o leite, comprar o pão, dar recados na casa da minha avó eram atividades que faziam parte do meu dia-a-dia.

Apesar do importante papel que Seu Miguel desempenhou como Mestre da Banda, na verdade, eu o conheci graças ao seu gosto pela leitura. Para ele, a idade e as transformações que ocorriam na economia do país àquela época foram determinantes para um lento e progressivo encolhimento da sua atividade comercial. Sem recursos para comprar jornais ou outros periódicos, dependia da ajuda de amigos para "manter a leitura em dia". Meu pai era assinante de um dos jornais que circulavam no estado. Após lê-los, guardava-os e, periodicamente, colocava-os numa sacola e mandava que eu os levasse para Seu Miguel. Fiz isso muitas vezes, não faço a menor ideia de quantas vezes isso aconteceu.

Apesar de ser apenas uma criança, eu tinha a compreensão de que os jornais traziam notícias que evoluíam e, naturalmente, caducavam com o passar dos dias, e eu me perguntava, o que poderia aquele homem extrair daqueles jornais velhos? Com o tempo percebi o quanto era importante para ele ler aquelas notícias porque, mesmo que já sabidas, ele assim podia fazer sua própria análise e tirar suas próprias conclusões. No tempo em que não se falava em reciclagem nem em “destinação adequada de rejeitos”, após ler aqueles jornais velhos Seu Miguel tinha o cuidado de mandá-los para a loja do meu pai, onde então, finalmente, seriam transformados em embalagens.

A casa comercial de Seu Miguel ficava na esquina da rua onde morava minha avó paterna e tinha o nome de Casa Milhões. Certo dia, Expedito Sobreira, um grande amigo e também um grande gozador, perguntou-lhe o porquê da escolha daquele nome. O Mestre então aprumou-se, impostou a voz e de maneira muito didática explicou:

 - Eu apenas fiz uma conjunção de nomes... MI de Miguel e LHÕES de Bulhões. Portanto, Casa Mi-lhões.

Expedito pronto para mais uma das suas gozações então perguntou.

 - Ô Seu Miguel? E se seu nome fosse Cupertínio Bulhões, como ficaria o nome da loja?

Seu Miguel parou... pensou... e quando percebeu a lorota, bombardeou.

 - Expedito! Você é um ignorante. Me respeite.

No final da história a amizade continuou e hoje, onde quer que eles estejam, tenho certeza que Seu Miguel está tocando algum instrumento, harpa ou trombone, tanto faz, mas Expedito Sobreira, com certeza, está tirando onda com a cara de alguém.

Colegas, como a semana está quase acabando, permitam-me desejar a todos um bom final de semana.

Saúde e paz.

Virgílio Agra.

domingo, 8 de julho de 2012

Café quente, adoçado a bala


Museu Theo Brandão, Maceió-AL

(texto escrito originalmente em 24/08/2009)

Colegas de todos os valores.

O lado bom de ser um contador de histórias é que quando você pensa que contou a última logo, logo aparece outra, ou então você descobre um fato novo e então pode recontar, com mais detalhes, uma história que já foi contada anteriormente.

Olhando pela vidraça do prédio onde trabalho, no centro de Maceió, vejo a Praça Sinimbu, vejo os fundos do Museu Theo Brandão e mais ao fundo avisto o Porto de Maceió e o mar azul-esverdeado do litoral caeté.

Há mais de 50 anos atrás, a praça era cortada pelo Riacho Salgadinho, um riacho de águas transparentes onde havia muitos caranguejos e peixes. Às suas margens havia uma casa muito bonita, de costas para o riacho e de frente para o mar, construída pela família Machado, uma família muito rica que havia em Maceió na primeira metade do século XX. Às margens do Salgadinho tinha também outra casa, menos pomposa, mas, para mim, muito mais significativa, era a casa de Tio Natalício, um irmão do meu avô.

Olhar a paisagem da Praça Sinimbu faz com que me lembre do meu velho tio e sempre que eu penso nele me vem à memória uma história que aconteceu muito antes de eu ter nascido e que me foi contada pela minha avó.

Por volta de 1919, antes de Virgulino se tornar Lampião, o bando dos Porcino era quem amedrontava o sertão alagoano. Nessa época o chefe daquele bando mandou uma carta para o povoado de Poço das Trincheiras dizendo que preparassem um café, porque eles iriam fazer uma visita ao lugar.

O meu bisavô, Sebastião Medeiros, chefe daquela família que era respeitada em toda a região, entendeu muito bem o recado. A visita, muito provavelmente, não seria cordial, portanto, pelo sim ou pelo não, resolveu esperar o visitante com ferro e chumbo quente. O povoado à época tinha poucas casas e todos os seus moradores eram praticamente da mesma família, um verdadeiro clã. Como líder daquele lugar e daquelas pessoas, sabia o que tinha que ser feito, logo, ordenou que as mulheres e crianças fossem se esconder no mato. Os homens foram armados, divididos em duplas, e passaram a vigiar os acessos ao lugarejo, montando guarda em pontos estrategicamente escolhidos, prontos para resistir à iminente invasão. Como as notícias que os cangaceiros permaneciam na região não paravam de chegar, a cada dia que passava a tensão aumentava. Tentando garantir um bom equilíbrio entre as duplas que mantinham a guarda, o Velho Medeiros procurou colocar sempre um homem jovem com outro mais velho, um defensor mais aguerrido com outro... Digamos assim, menos impetuoso e mais experiente.

Tio Natalício foi um dos defensores do lugar, na época era apenas um rapaz e, com certeza, não tinha muita afinidade com a arte da guerra. Em um desses dias, estava ele de guarda numa estrada que dava acesso ao povoado, quando de repente, lá longe, avistou uma poeira e uma tropa que avançava exatamente na direção do seu posto de vigilância. As estradas daquela época não passavam de trilhas onde os únicos veículos capazes de transitá-las eram os carros-de-boi. O pavor tomou conta dele. Os cangaceiros eram combatentes ferozes e muito habilidosos, enfrentá-los era a mesma coisa que encarar a morte. Antecipando o que estava para acontecer Tio Natalício não contou conversa, largou o rifle e correu, digo, tentou correr. O seu companheiro de guarda era um seu tio, mais velho, experiente e com muita coragem tanto para morrer quanto para matar. Vendo a cena, antecipou-se ao sobrinho e pegando-o pela beca apontou o revólver para sua cabeça e gritou:

 - Natalício! Se você correr eu "lhe" mato.

Em seguida soltou-lhe a camisa e manteve a arma apontada e engatilhada. Naquela época o cabra tinha que ser macho, se assim não fosse, melhor seria estar morto. Percebendo o dilema em que se encontrava, o jovem Natalício tomou sua decisão e, mesmo com medo, pegou novamente o rifle e se preparou para enfrentar o que... E quem viesse. E qual não foi a sua surpresa quando descobriu que o bando que se aproximava era uma tropa de burros que transportava mercadorias para o comércio do sertão.

Os dias se passaram e os Porcino não apareceram. Assim, dia após dia, a tensão foi diminuindo, as pessoas foram voltando para suas casas e retomando suas atividades corriqueiras. Pouco tempo depois meu bisavô foi procurado por um compadre que morava no vizinho povoado de Maravilha. Este veio informar do casamento da sua filha, mas lamentando não poder fazer uma festa porque os Porcino haviam avisado que, se ele fizesse a festa eles iriam lá para acabar na bala. Não sei exatamente por quais meios, mas havia a informação de que o bando encontrava-se no povoado Olho d’Água do Chicão, a atual cidade de Ouro Branco, vizinho a Maravilha. Vozinho então disse para o compadre:

 - Volte para Maravilha, faça a festa de casamento que eu vou lá para ver se os cabras aparecem.

No dia combinado o velho Medeiros reuniu um grupo de homens experientes e bem armados e partiu para a casa do compadre, de modo que o casamento se realizou, a festa durou a noite toda e os cabras não apareceram para tomar sequer um refresco.

Pela manhã, Vozinho mandou um recado para o Olho d’Água do Chicão com os seguintes dizeres:

 "Preparei um café e você não veio. Vou levar o café aí".

Partiu em direção ao Ouro Branco onde finalmente houve uma troca de tiros. Ao que me consta ninguém morreu, mas daquele dia em diante uma relação de respeito mútuo foi firmemente estabelecida.

O tempo passou, Tio Natalício tornou-se um adulto, veio morar em Maceió, casou, trabalhava num banco e morava numa rua pacata, tendo aos fundos o Riacho Salgadinho.

Hoje, o Riacho Salgadinho não corta mais a Praça Sinimbu, canalizado e poluído, teve seu curso desviado e deságua há algumas centenas de metros antes, depositando lixo na outrora bela Praia da Avenida. A casa da família Machado foi completamente restaurada e hoje é a sede do Museu Theo Brandão, mantido pela Universidade Federal de Alagoas. A mesma sorte não teve a casa de Tio Natalício, esta foi demolida e seus escombros sequer foram removidos do local que um dia a abrigou.

Pois é, colegas. Desejando que Deus vos ilumine nas decisões que um dia tiverem que tomar, aproveito a oportunidade para desejar a todos uma ótima semana de trabalho.

Saúde e paz.

Virgílio Agra.

PS: A história aqui contada já havia sido escrita baseada nos relatos da minha avó Lindalva, mas quero agradeço ao meu Tio Olivan Medeiros e ao escritor Antônio Amaury Correia de Araújo que me passaram outras informações que a complementaram.
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